Greve e salário
Jorge Luiz Souto Maior
A greve, porque provoca uma alteração
no cotidiano, gera as mais diversas reações de contrariedade, sobretudo
daqueles que, de certo modo, são atingidos por ela.
Boa parte da inteligência humana, por
conseguinte, durante muito tempo foi voltada para limitar o exercício da greve.
Com o necessário aprimoramento da estrutura democrática, chegou-se à concepção
da greve como um direito dos trabalhadores. Mas, a mera consideração da greve
como direito não é suficiente para que se compreenda a importância e o alcance
social da greve, causando-lhe limites indevidos.
Não que direitos não possam ter
limites, mas no caso da greve os limites impostos podem gerar a conseqüência
paradoxal de impedir-lhe o efetivo exercício. O direito de greve, assim, pode
ser negado pelo próprio direito.
A bem compreender, a greve não é um
modo de solução de conflitos e sim uma forma pacífica de expressão do próprio
conflito. Trata-se de um instrumento de pressão, legitimamente utilizado pelos
empregados para a defesa de seus interesses.
Em uma democracia deve-se abarcar a
possibilidade concreta de que os membros da sociedade, nos seus diversos
segmentos, possam se organizar para serem ouvidos. A greve, sendo modo de
expressão dos trabalhadores, é um mecanismo necessário para que a democracia
atinja às relações de trabalho.
Na ordem jurídica atual conferiu-se
aos trabalhadores, no choque de interesses com o empregador, o direito de
buscarem melhores condições de trabalho, recriando, a partir da solução dada, a
própria ordem jurídica. Um ato que ao olhar do direito civil tradicional seria
considerado uma ilegalidade, pois conspira contra o direito posto, na esfera
trabalhista, inserido no contexto do Direito Social, ganha ares de exercício
regular do direito.
No Direito Social, ou melhor, na
formação do Estado Social de Direito, os valores humanísticos desenvolvidos na
experiência do convívio social foram incorporados ao direito como valores
jurídicos de caráter genérico (direito à vida, por exemplo). O próprio
ordenamento reconhece que essas expressões normativas de caráter genérico
requerem concretização e isso somente pode se dar em hipóteses determinadas.
Assim, quando o ordenamento jurídico trabalhista confere aos trabalhadores a
possibilidade de se rebelarem contra o direito contratualmente posto, para
reconstrução dos limites obrigacionais, não se está, propriamente,
estabelecendo uma contradição dentro do sistema, que exporia o Direito do
Trabalho à condição de um anti-direito, muito ao contrário, o que se permite é
uma possibilidade concreta de se tornarem reais as “promessas” contidas nas
fórmulas genéricas do Estado Social.
Pode-se imaginar que essa “luta” por
melhores condições de trabalho seja mais uma questão sociológica que jurídica,
pois a todas as pessoas, mesmo nas relações civis, é dada a liberdade para
defenderem seus interesses e a partir daí firmarem relações jurídicas que
atendem a tais interesses. A diferença é que no Direito do Trabalho essa
“luta”, ela própria, é garantida pelo direito, resultando na formação,
institucional de um direito à luta pelo direito.
Interessante perceber, ainda, que a
consagração pelo próprio direito da possibilidade de se reconstruir, em
situações concretas, a ordem jurídica, representa um relevante fator de
estabilização das relações sociais, pois permite sua constante evolução,
evitando, assim, a solução mais comum quando os interesses, sobretudo
econômicos, entram em conflito com o conteúdo obrigacional, fixado no contrato,
que é a da cessação do vínculo, sendo de se destacar que no contexto coletivo mais
amplo a impossibilidade de composição dos conflitos pode gerar o completo
desajuste social.
Importante, também, destacar que a
abrangência desse direito não se limita à reavaliação das normas contratuais
estabelecidas. Integra-lhe, igualmente, a lacuna (o vazio), ou seja, o que não
fora fixado em cláusulas específicas, já que o vazio não é apenas um nada, e
sim a ocupação de um lugar daquilo que lá poderia estar. Trata-se de uma
regulação específica, quando necessária, de um valor jurídico de caráter genérico.
Deve-se recordar, ainda, que o Estado
Social, ao considerar os trabalhadores como classe e atraí-los, nessa
configuração, para o contexto social, conferiu-lhes o direito de defenderem os
seus interesses, o que se traduziu juridicamente como o princípio da constante
melhoria da condição social e econômica da classe trabalhadora, que se insere
no conceito mais amplo de justiça social e que representa a parcela mais
importante do compromisso firmado pelos detentores do poder, no período pós
segunda guerra mundial, de desenvolverem um capitalismo socialmente
responsável.
É assim, portanto, que o Direito
permite aos trabalhadores defenderem, por meio da greve, os interesses que
considerarem relevantes para a melhoria da sua condição social e econômica até mesmo
fora do contexto da esfera obrigacional com um empregador determinado.
A greve vista, pela ótica do Direito
Social, conseqüentemente, é um instrumento a ser preservado. Ao direito não
compete limitá-la e sim garantir que possa ser, efetivamente, exercida e a
forma mais rudimentar de cumprir esse objetivo é não impor aos trabalhadores o
sacrifício do próprio salário do qual dependem para sobreviver. O direito não
pode meramente fixar os contornos de um jogo no qual quem pode mais chora
menos. O que o direito deve fazer é permitir que o jogo seja jogado, atribuindo
garantias aos trabalhadores para que o valor democrático possa ter um sentido
real.
Oportuno registrar que muitas das
pessoas que hoje abominam a greve não se recordam que as garantias jurídicas de
natureza social que possuem, aposentadoria, auxílio-doença, licenças, férias,
limitação da jornada de trabalho etc. etc. etc., além de direitos políticos
como o voto e a representação democrática das instituições públicas advieram da
organização e da reivindicação dos movimentos operários.
Negar aos trabalhadores o direito ao
salário quando estiverem exercendo o direito de greve equivale, na prática, a
negar-lhes o direito de exercer o direito de greve, e isto não é um mal apenas para os trabalhadores,
mas para a democracia e para a configuração do Estado Social de Direito do qual
tantos nos orgulhamos!
Conforme Ementa, da lavra de Rafael
da Silva Marques, aprovada no Congresso Nacional de Magistrados Trabalhistas,
realizado em abril/maio de 2010: “não são permitidos os descontos dos
dias parados no caso de greve,salvo quando ela é declarada ilegal. A expressão
suspender, existente no artigo 7 da lei 7.783/89, em razão do que preceitua o
artigo 9º. da CF/88, deve ser entendida como interromper, sob pena de
inconstitucionalidade, pela limitação de um direito fundamental não-autorizada
pela Constituição federal”.
Ora, se a greve é um direito
fundamental não se pode conceber que o seu exercício implique o sacrifício de
outro direito fundamental, o da própria sobrevivência. Lembrando-se que a greve
traduz a própria experiência democrática da sociedade capitalista, não se
apresenta honesto impor um sofrimento aos trabalhadores que lutam por todos,
que, direta ou indiretamente, se beneficiam dos efeitos da greve.
É importante destacar esse aspecto da
contrariedade pessoal que se possa ter em face das greves (que é, como dito,
totalmente injustificável), pois é, afinal, essa visão negativa da greve,
advinda de preocupações individualistas, que motivam as interpretações
limitadoras do direito de greve.
Para negar aos trabalhadores o
direito ao recebimento de salário no período em que exercem o direito de greve
escora-se em previsão contida na Lei n. 7.789/89, que assim dispõe:
“Artigo 7º - Observadas as condições
previstas nesta Lei, a participação em grevesuspende o
contrato de trabalho, devendo as relações obrigacionais,
durante o período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo arbitral ou
decisão da Justiça do Trabalho.”
Imagina-se que este dispositivo tenha
retirado dos trabalhadores o direito de recebimento de salário durante o
período da greve, mas de fato, vale reparar, não há disposição expressa neste
sentido. Esse, ademais, é o primeiro dado a ser observado, pois a perda do
salário só se justifica em caso de falta não justificada e é mais que evidente
que a falta de trabalho, decorrente do exercício do direito de greve, está mais
que justificada, pois, afinal, a greve é um direito do trabalhador.
Cumpre verificar, também, que quando
o trabalhador está exercendo o direito de greve sequer se pode falar em “falta
ao trabalho”, pois a greve pressupõe ausência de trabalho e não ausência ao
trabalho. Os trabalhadores em greve comparecem ao local de trabalho – ou
próximo a ele – para fazerem suas manifestações e reivindicações. É
interessante perceber que em alguns locais de trabalho a experiência humana,
dos pontos de vista cultural, acadêmico, político e democrático, é muito mais
intensa nos períodos de greve, quando se deixa de lado o trabalho burocratizado,
mecanizado, e se estabelece um debate aberto sobre a própria estrutura na qual
o trabalho se insere.
Acrescente-se que legalmente falando
não há diferença entre interrupção e suspensão do contrato de trabalho, embora
a doutrina tenha criado essa diferenciação em razão da expressão trazida como
denominação do Capítulo IV da CLT: “Da Suspensão e da Interrupção”.
O fato é que embora o nome do
Capítulo seja este, a própria CLT não definiu as figuras em questão. Por
esforço classificatório, a doutrina nacional tratou de separar as hipóteses.
Mas, sem o pressuposto de uma definição legal, formou-se na doutrina uma
divergência a respeito do assunto, pois para alguns a suspensão seria
caracterizada pela ausência total de efeitos jurídicos[2] enquanto
que para outros a produção de alguns efeitos não a descaracterizaria[3]. Para estes
últimos, o elemento diferenciador seria apenas o recebimento, ou não, do
salário, com a conseqüente contagem do tempo de serviço.
Na verdade, a discussão acadêmica
acerca do melhor critério para separar interrupção e suspensão tem pouca ou
nenhuma importância, pois os efeitos jurídicos atribuídos a cada situação devem
ser determinados na lei.
Assim, quando a Lei n. 7.783/89 traz
a expressão suspensão não se pode atribuir a ele os efeitos jurídicos postos
por uma classificação de caráter doutrinário, que sequer se apresenta de forma
unânime.
Do ponto de vista da doutrina
estrangeira, por exemplo, não se tem essa diferenciação. Todas as hipóteses em
que não há prestação de serviço por parte do empregado e se mantém vigente a
relação de emprego são tratadas como suspensão[4][5][6].
Orlando Gomes e Élson Gottschalk, por
exemplo, também tratam as hipóteses como sendo apenas de suspensão,
subdivididas em suspensão total e suspensão parcial: “Entre nós, a Consolidação
no Título IV, Capítulo IV, trata da Suspensão e da Interrupção do
contrato de trabalho, e grande parte da doutrina, seguindo esta distinção,
entende que como suspensão se deve encarar a total paralisação
dos efeitos do contrato de trabalho, e como interrupção, procura-se
explicar, compreende-se a manutenção de alguns efeitos e a paralisação de
outros. Trata-se de técnica peculiar apenas ao direito pátrio, sem
correspondência no direito alienígena, e que, em verdade, se trata de mais uma
terminologia ineficaz para substituir a suspensão parcial do
contrato, cujo vinculo júris não se rompe nem se interrompe
com ocorrências de determinadas causas, que apenas suspendem
temporariamente a relação de emprego.”[7]
Ao manterem a distinção, embora com
outra nomenclatura, os autores mencionados buscam fixar um critério para
identificá-la: “A suspensão pode ser total ou parcial. Dá-se,
totalmente quando as duas obrigações fundamentais, a de prestar o serviço e a
de pagar o salário, se tornam reciprocamente inexigíveis. Há suspensão
parcial quando o empregado não trabalha e, não obstante, faz jus ao
salário.”[8].
Nestes termos, do ponto de vista
terminológico, com base na doutrina de Orlando Gomes e Élson Gottschalk, a
suspensão da relação de emprego, sendo parcial, pode implicar a obrigação do
pagamento de salário.
O que importa, unicamente, é saber o
que a lei considera suspensão da relação de emprego e quais efeitos jurídicos
são por ela, a lei, mantidos vigentes durante o período correspondente,
sabendo-se que o efeito da manutenção da relação de emprego está sempre
presente, pois, afinal, é este efeito que diferencia a situação de outra que
lhe é, esta sim, concretamente avessa, que é a cessação da relação de emprego.
Arnaldo Süssekind comentando a origem
da distinção, que se espelhou nas experiências do direito comparado, que se
utiliza, no entanto, das figuras da suspensão total ou parcial, dá o relato de
uma tese apresentada à Universidade de Brasília, por Sebastião Machado
Filho, que, igualmente, já havia refutado tanto a nomenclatura
quanto a distinção adotadas pela Consolidação das Leis do Trabalho,
“sustentando que se verifica, apenas a ‘suspensão da prestação de execução de
serviço’.”[9]
No tema pertinente à suspensão da
relação de emprego, o que importa é, portanto, verificar quais os efeitos
obrigacionais são fixados por lei. Não cabe à doutrina dizê-lo. E, de fato, no
caso da greve cumpre reparar que a lei nada estabeleceu sobre os efeitos
obrigacionais. Apenas restou dito que “a greve suspende o contrato de
trabalho”. Ora, se o legislador não fixou diferença entre suspensão e
interrupção e, ademais, considerando o pressuposto da experiência jurídica
estrangeira, trouxe essa forma de nominação fora de um parâmetro técnico, não
se pode dizer que quando, em lei especial, referiu-se apenas à suspensão tenha
acatado a classificação feita pela doutrina, que, ademais, como dito, não é
unânime quando aos critérios de separação entre hipóteses de suspensão e
interrupção. Do ponto de vista doutrinário, é mais correto dizer que a lei de
greve corrigiu uma incoerência nominativa trazida na CLT, nada mais que isso.
Aliás, não pode mesmo ser outra a
conclusão, considerando o que diz, na seqüência, a referida Lei n. 7.783/89:
“...devendo as relações obrigacionais, durante o
período, ser regidas pelo acordo, convenção, laudo
arbitral ou decisão da Justiça do Trabalho.” – grifou-se
Ora, o que diz a lei é que os efeitos
obrigacionais não estão fixados pela lei. Assim, não pode o empregador,
unilateralmente, dizer que está desobrigado de pagar salários durante a greve,
pois não terá base legal nenhuma a embasá-lo.
E, como se está procurando
demonstrar, o direito do recebimento de salário é um efeito obrigacional
inegável na medida em que, por lei, o não recebimento de salário somente
decorre de falta injustificada ao serviço, ao que, por óbvio, não se equipara a
ausência de trabalho em virtude do exercício do direito de greve. É evidente
que o exercício de um direito fundamental, o da greve, não pode significar o
sacrifício de outro direito fundamental, o do recebimento de salário.
A interpretação extensiva dos termos
da lei, implicando na negativa ao direito de recebimento de salários, é
imprópria mesmo sob o prisma das técnicas de interpretação do direito comum,
quando mais em se tratando de um direito social. É evidente que a preocupação
do legislador, ao dizer que a greve “suspende o contrato de trabalho”, foi a de
dar ênfase à preservação da relação de emprego, evitando que o empregador
considerasse os dias parados como faltas ao trabalho e propugnasse pela
cessação dos vínculos jurídicos. É o que consta, ademais, com todas as letras
no parágrafo único do artigo 7º., da lei em questão: “É vedada a rescisão de
contrato de trabalho durante a greve, bem como a contratação de trabalhadores
substitutos, exceto na ocorrência das hipóteses previstas nos artigos 9º e 14.”
Interessante observar que essas
garantias legais para o exercício do direito de greve não se dão sem uma
contrapartida. O artigo 9º. determina que “Durante a greve, o sindicato ou a
comissão de negociação, mediante acordo com a entidade patronal ou diretamente
com o empregador, manterá em atividade equipes de empregados com o propósito
de assegurar os serviços cuja paralisação resultem em prejuízo
irreparável, pela deterioração irreversível de bens, máquinas e
equipamentos, bem como a manutenção daqueles essenciais à retomada das
atividades da empresa quando da cessação do movimento.” – grifou-se
Assim, a greve, como instituto
jurídico de natureza coletiva, deve se realizar de modo a não gerar dano
irreparável ao empregador do ponto de vista de seu maquinário. Essa situação
elimina, por completo, a visão individualista que ainda insiste em assombrar a
greve e mesmo a conclusão de que o salário não é devido durante o período de
parada. Ora, quem deve definir como esses serviços serão executados, conforme
dispõe a lei, é o sindicato (ou a comissão de negociação), mediante acordo com
a entidade patronal ou diretamente com o empregador. Não será, portanto, o
empregador, sozinho, que deliberará a respeito junto com os denominados empregados
“fura-greves”. A manutenção das atividades do empregador, com incentivos
pessoais a um pequeno número de empregados, que, individualmente, resolvem
trabalhar em vez de respeitar a deliberação coletiva dos trabalhadores,
constitui uma ilegalidade, uma frustração fraudulenta ao exercício legítimo do
direito de greve.
Neste sentido, não se pode opor, no
ambiente de trabalho, o direito liberal, de ir e vir, perante o direito de
greve, cuja deflagração se deu coletivamente. A lei, ademais, é clara quanto ao
aspecto de que a continuação das atividades inadiáveis do empregador deve ser
definida em negociação com o sindicato ou a comissão de negociação.
Dentro deste contexto, a atuação dos
trabalhadores em greve de impedir, pacificamente, que os “fura-greves” adentrem
o local de trabalho, ou seja, a realização do conhecido “piquete”, constitui
parte essencial do exercício do direito de greve. Neste aspecto, ademais,
falham os sindicatos ao não levarem ao Judiciário, a fim de obterem uma tutela
jurisdicional a respeito, a questão pertinente à continuidade das atividades do
empregador durante a greve sem a devida negociação com os sindicatos.
Votando ao problema do salário,
veja-se que o dispositivo do art. 9º constitui uma pá de cal na argumentação
contrária à que se expressa neste texto. Ora, se todos os trabalhadores,
manifestando sua vontade individual, deliberam entrar em greve, o sindicato,
como ente organizador do movimento, deve, segundo os termos da lei, organizar a
forma de execução das atividades inadiáveis do empregador. Para tanto, deverá
indicar os trabalhadores que realizarão os serviços, os quais, mesmo tendo
aderido à greve, terão que trabalhar. Prevalecendo a interpretação de que a
greve representa a ausência da obrigação de pagar salário, de duas uma, ou
estes trabalhadores, que apesar de estarem em greve e que trabalham por
determinação legal, não recebem também seus salários mesmo exercendo trabalho,
ou em os recebendo cria-se uma discriminação odiosa entre os diversos
trabalhadores em greve.
Dito de forma mais clara, se todos os
trabalhadores do setor de manutenção resolvem aderir à greve, por determinação
legal estarão obrigados a realizar serviços inadiáveis. Definirão, então, entre
si quais os trabalhadores farão os serviços e mesmo poderão deliberar a
realização de um revezamento para a execução de tais serviços. É claro que não
se poderá criar entre os que estarão trabalhando, por deliberação também
coletiva, uma diferenciação jurídica acerca do direito ao recebimento, ou não,
de salários.
Veja-se o que se passa, igualmente,
nas denominadas atividades essenciais. O artigo 11 da lei de greve dispõe que
“Nos serviços ou atividades essenciais, os sindicatos, os empregadores e os
trabalhadores ficam obrigados, de comum acordo, a garantir, durante a greve, a
prestação dos serviços indispensáveis ao atendimento das necessidades
inadiáveis da comunidade”, acrescentando o parágrafo único do mesmo artigo que
“São necessidades inadiáveis, da comunidade aquelas que, não atendidas,
coloquem em perigo iminente a sobrevivência, a saúde ou a segurança da
população”.
Ora, se cumpre aos trabalhadores em
greve manter os serviços essenciais, é natural que, pelo princípio da isonomia,
não se crie uma diferenciação entre os empregados que estão trabalhando por determinação
legal, para atender as atividades inadiáveis da comunidade, e os que não estão
trabalhando, ainda mais porque a deliberação acerca de quem deve trabalhar no
período da greve não é uma decisão individual e sim coletiva, como estabelece a
própria lei.
Neste sentido, repita-se: a decisão
de trabalhar, ou não, no período de greve não pertence a cada trabalhador,
individualmente considerado, daí porque, também, se torna legítima toda forma,
pacífica, de impedir que o trabalho, para além das necessidades inadiáveis,
continuem sendo executados, seja por vontade individual de um trabalhador, seja
pela contratação, por parte do empregador, de empregados para a execução dos
serviços, não se admitindo até mesmo que empregados de outras categorias, como
terceirizados, por exemplo, supram as eventuais necessidades de mera produção
dos empregadores no período.
Assim, piquetes e até ocupações
pacíficas do local de trabalho se justificam para que se faça prevalecer, em
concreto, o legítimo e efetivo exercício do direito de greve.
Nunca é demais lembrar que os efeitos
benéficos da negociação advinda da greve atingirão a todos os trabalhadores,
indistintamente, e não apenas àqueles que de fato levaram adiante a luta pela
conquista de melhores condições de trabalho.
Interessante perceber, também, que o
ato da paralisação do trabalho, a greve propriamente dita, porque aparece
publicamente, acaba fazendo crer que os trabalhadores cometem uma agressão
contra o empregador e mesmo contra a sociedade ao executá-la. Mas, pouco se
percebe que para chegarem à greve os trabalhadores já foram alvo de intensa
violência, embora velada.
Essa inversão de análise, aliás, vem
imperando em nossa realidade, em diversos aspectos, chegando ao ponto de
motivar a consideração de que direitos trabalhistas são privilégios e que
cumpre a sociedade reprimir os grevistas, segundo tem proposto o atual reitor
da Universidade de São Paulo, como se os trabalhadores não fossem, também eles,
integrantes dessa mesma sociedade.
Recentemente, a Presidência do
Tribunal Regional do Trabalho da 15ª. Região, nos “considerandos” do Ofício n.
306/2010-DGCA, definiu a greve como um “direito dos cidadãos” e buscou ver na
lei de greve uma espécie de regulação da defesa dos interesses da sociedade em
face dos grevistas. E, como ameaça à realização da greve por parte dos
servidores chegou mesmo a sugerir que a demora da prestação jurisdicional seria
culpa dos servidores, que estariam desrespeitando o “interesse público”.
Determinou, assim, o corte dos salários dos servidores em greve como forma de
punição pelo sacrifício imposto ao “público jurisdicionado”, que teria ficado
“frustrado em sua expectativa de solução breve de suas lides trabalhistas”,
integradas por créditos, em sua maioria, “de caráter alimentar”, como se o
salário dos servidores, cujo corte fora determinado, não fosse da mesma
natureza.
De um direito, a greve se tornou, por
si, mesmo sem avaliação do conteúdo das reivindicações, um ato ilícito, e,
pior, segundo posicionamento advindo do interior da própria instituição criada
para a defesa dos direitos dos trabalhadores, a Justiça do Trabalho. E, na
perspectiva dos trabalhadores, em vez de um direito, a greve se transforma em
um ato de heroísmo ou ignorância, já que se põe em risco o próprio pescoço para
lutar por outros que, por medo ou desprezo, não aderem ao movimento...
Interessante verificar que fora com
base na lei de greve que a Presidência do Tribunal fixou, unilateralmente,
quais seriam as atividades inadiáveis e o percentual de servidores (50%, em cada
unidade) que deveriam permanecer trabalhando, contrariando, no entanto,
frontalmente, os próprios termos da lei a que se refere, a qual, repita-se,
determina que essa deliberação deve ser feita de “comum acordo” com os
trabalhadores (art. 11).
O fato é que as ameaças econômicas,
como represálias à adesão a atividades sindicais – e a greve é a principal
delas – para intimidar e gerar medo nos trabalhadores, constituem atos
anti-sindicais, tais como definidos na Convenção 98 da OIT (ratificada pelo
Brasil, em 1952), que justificam, até, a apresentação de queixa junto ao Comitê
de Liberdade Sindical da referida Organização.
A questão é muito simples e como tal
deve ser encarada: a greve é um direito dos trabalhadores e para o efetivo
exercício desse direito, conforme garantido pelo artigo 9º., da Constituição
Federal, não se pode tolerar o desconto de salário dos dias parados,
salvo a partir do momento em que a greve, sendo o caso, for declarada ilegal
pelo Poder Judiciário, sendo de se destacar que esse é o efeito máximo que
o Judiciário pode conferir à greve, ou seja, não cumpre ao Judiciário
determinar que os trabalhadores voltem compulsoriamente ao trabalho. A estes,
unicamente, caberá assumir os riscos referentes aos eventuais efeitos jurídicos
pelas ausências ao trabalho que passam, aí sim, a ser injustificadas.
Cumpre lembrar que para a Organização
Internacional do Trabalho sequer a solução judicial da greve é possível,
cumprindo às partes, de comum acordo, buscarem o mecanismo de solução, a não
ser nos casos de serviços essenciais, no sentido estrito do termo, quais sejam,
“aquellos cuya interrupción podría poner en peligro la vida, la seguridad o la
salud de la persona en toda o parte de la población”, conforme definido no caso
n. 1839, julgado pelo Comitê de Liberdade Sindical, tratando da greve dos
petroleiros de 1995. Nunca é demais recordar que no mesmo caso em questão o
governo brasileiro foi criticado pelas dispensas de 59 trabalhadores grevistas
(que, posteriormente, acabaram sendo reintegrados) e pelas multas que o
Tribunal Superior do Trabalho impôs ao sindicato em razão de não ter
providenciado o retorno às atividades após a declaração da ilegalidade da
greve.
Vale acrescentar que no que se refere
aos servidores públicos, aos quais a Constituição brasileira assegurou o
direito de greve, por tradição histórica, o não-desconto de salários em caso de
greve se incorporou ao patrimônio jurídico dos servidores. Qualquer alteração
neste sentido, portanto, além de ilegal, conforme acima demonstrado, representa
um grave desrespeito aos princípios do não-retrocesso social e da condição mais
benéfica, até porque as experiências democráticas no sentido da construção da
cidadania devem evoluir e não retroceder.
Em suma: só há direito à
greve com garantia plena à liberdade de
reivindicação por parte dos trabalhadores, pois, afinal, os trabalhadores em
greve estão no regular exercício de um direito, não se concebendo que o
exercício desse direito seja fundamento para sacrificar o direito à própria
sobrevivência, que se vincula ao efetivo recebimento de salário.
[1]. Juiz do Trabalho,
titular da 3a. Vara do Trabalho de Jundiaí. Professor de direito do trabalho da
Faculdade de Direito da USP.
[2]. SÜSSEKIND,
Arnaldo e outros. Instituições de
Direito do Trabalho. 21ª ed. Vol. 1. São
Paulo: Ltr, 2003, p. 281 e 301.
[3]. CATHARINO, José Martins. Contrato de emprego: comentários aos arts. 442/510 da CLT. 2a ed. Rio de Janeiro: Edições trabalhistas, 1965, p. 242; DELGADO,
Maurício Godinho. Curso de Direito do
Trabalho. São Paulo: LTr. 2002. p. 1032.
[5]. TORRES, Guillermo
Cabanellas de. Compendio de Derecho Laboral. 3ª ed. Tomo I. Buenos Aires: Heliasta. 1992. p.
848.
[6]. Embora mesmo nesta exista os que a adotam como
BUEN L., Néstor de. Derecho
del trabajo. 2ª ed. Tomo I. México: Porrúa. 1977. p. 541-542.
[7]. GOMES, Orlando e
GOTTSCHALK Elson, Curso de Direito do
Trabalho. Vol. I. Rio de Janeiro:Forense. 1981. p. 454.
[8]. GOMES, Orlando e
GOTTSCHALK Elson, Curso de Direito do
Trabalho. Vol. I. Rio de Janeiro:Forense. 1981. p. 454.
[9]. SÜSSEKIND,
Arnaldo e outros. Instituições de Direito do Trabalho. 21ª ed.
Vol. 1. São Paulo: Ltr. 2003. p. 490.
Texto extraído de http://www.ajd.org.br/artigos_ver.php?idConteudo=57
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